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segunda-feira, 24 de março de 2014

20 anos do Real acende luz de alerta e impõe desafios ao Marketing


"Após mudanças no consumo promovidas pela estabilização da moeda, brasileiros voltam a rever padrões para reequilibrar orçamento impactado pela alta da inflação."




*.#||#.* Por Renata Leite, do Mundo do Marketing | 24/03/2014



Plano Real, Nielsen, inflação, consumoEm 1994, surgia o Plano Real como promessa de solução para a economia brasileira, que registraria 757,29% de inflação apenas nos sete primeiros meses daquele ano. 

A nova moeda de fato revolucionou o mercado e os hábitos de consumo no país, mas sua desvalorização e a volta da escalada de preços acende o sinal de alerta entre empresários e consumidores. Ao longo de 2013, a inflação, que nunca chegou aos índices dos países desenvolvidos, deixou de ter as compensações presentes nos últimos tempos. 

A primeira retração em uma década no consumo dos cerca de 130 itens que compõem a cesta da Nielsen lança luz sobre a crise avistada pelo Real em meio às comemorações de seus 20 anos.

O retrato não é dos mais animadores. Se o crédito farto e a redução das taxas de desemprego levaram milhões de famílias às compras nos últimos tempos, o endividamento delas e a situação próxima ao pleno emprego enfraquecem o poder dessas molas propulsoras. 

A classe média brasileira gasta cerca de R$ 3.116,00, 15% mais do que ganha (R$ 2.924,00), o que já reflete na queda da disponibilidade de crédito ao consumidor verificada nos últimos meses. A situação não poderia mesmo ser sustentável por muito tempo.

As consequências já são evidentes. O número de pessoas físicas inadimplentes na base de registros do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) aumentou 5,54% em fevereiro, na comparação com o mesmo período de 2013. O SPC Brasil e a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) estimam que, ao fim do mês passado, 52 milhões de brasileiros tenham deixado de pagar pelo menos uma dívida nos últimos cinco anos. 

“O crédito veio sendo oferecido de maneira intensiva. O Plano Real é que deu condições para isso acontecer porque deixou o consumidor mais confiante para pegar empréstimos e também permitiu às instituições concedê-los”, diz Aline Sena, analista da Nielsen, em entrevista ao Mundo do Marketing.

Mudanças nos hábitos de consumo
À conjuntura soma-se a atual ameaça inflacionária, que ainda está longe da realidade anterior ao Plano Real, mas já provoca mudanças nos hábitos de consumo das famílias. Para manter as conquistas obtidas desde a estabilização da moeda, a população já dá indício de que passará a privilegiar uma racionalização no momento da compra. 

“O aumento dos preços está levando o brasileiro a novos tipos de escolha, para poder acessar todos os produtos que ele adquiriu no passado e não quer abrir mão agora”, avalia José Fraga, Analista da Nielsen, em entrevista ao Mundo do Marketing.

Lojas que adotam o formato cash and carry, também conhecido como atacarejo, vêm ganhando importância por oferecerem mais competitividade em preços. Esse tipo de comércio prioriza o autosserviço e oferece a possibilidade de se comprar em quantidade pela via atacadista. 

A Nielsen aponta ainda, na pesquisa “Mudanças No Mercado Brasileiro 2014 – O Consumo: Renovar para Crescer”, a redução do consumo fora do lar, levando a retrações no segmento de bares, num ajuste de orçamento. Outros serviços supérfluos, como as viagens, também passam a sofrer cortes.

Por outro lado, os consumidores que não querem abrir mão de produtos mais caros optam por adquiri-los em embalagens menores, em especial em categorias relacionadas a impulso. Há também a troca de itens por similares de marcas com melhor preço, movimento notado com mais clareza na compra de café e suco pronto.

“O patamar de inflação que vemos divulgado, em torno de 5% a 6%, não é o que o consumidor sente. Quando olhamos para os preços administrados pelo governo, como o do combustível e do transporte, o aumento em 2013 foi de 1,5%. Já no setor de alimentos, de cosméticos e de bebidas, esse índice chega a 8%. Por isso, a sensação de inflação do consumidor é muito maior do que a média divulgada pela União” explica José Fraga.

Perspectivas melhores no interior
As perspectivas para quem investe em mercados do interior são melhores, já que fatores capazes de compensar a inflação, mas já saturados nas capitais, ainda fazem efeito nessas regiões. O acesso ao crédito continua em expansão, assim como há uma considerável parcela da população desocupada para ser empregada e aumentar o consumo. Em paralelo, existem muitas categorias que não chegaram ao nível de penetração presente nos centros urbanos e, portanto, têm vasto mercado a explorar.

As empresas devem ainda focar nos consumidores fiéis à marca e direcionar investimentos para ele, no intuito de driblar as dificuldades que surgem no cenário atual mais competitivo. “A companhia deve concentrar esforços no heavy user ou heavy buyer da marca e naqueles que sejam muito envolvidos com ela. Esse grupo tem maior probabilidade de gerar vendas e gerar incremento de valor. Ele é o mais rentável”, garante Aline Sena.

O sinal de alerta traça um panorama de desafios para o mercado, mas essa não será a primeira vez que os gestores precisarão rever estratégias para melhor atender ao público. A própria instituição do Real enquanto moeda no Brasil, em 1° de julho de 1994, exigiu que os diversos segmentos revissem sua forma de atuar, há 20 anos. 

A transição começou em 1º de março daquele ano, com o lançamento da Unidade Real de Valor (URV). A abertura do mercado aos importados como forma de ampliar a concorrência e segurar a inflação exigiu do Marketing e das demais áreas maior profissionalização.

Marketing em padrão internacional
A partir do ano 2000, os departamentos passaram a usar estudos de benchmarking internacionais como referência para inovações não só em produtos e serviços, mas também em comunicação com o cliente, em posicionamento de marca, atendimento, pré-venda, pós-venda e envolvimento de parceiros. 

“A competência de uma empresa até aquele momento tinha muito mais a ver com arquitetura financeira do que a entrega de valor ao mercado, e esse jogo mudou. Com o Plano Real, os preços ficaram mais estáveis e esse “P” do Marketing tático ficou mais fácil, permitindo à área fazer um trabalho mercadológico mais forte”, relata Carlos Gustavo Caixeta, economista e professor de Marketing estratégico do IBMEC MG, em entrevista ao Mundo do Marketing.

Os consumidores passaram a sentir o valor do dinheiro na mão deles e a comparar mais qualidade e preço. Essa exigência se acentuou no fim da década de 1990 e início de 2000 também impulsionada pela popularização da internet, que favorecia as comparações. 

As empresas precisaram evoluir, amadurecer, para ser de fato importantes para o seu público-alvo. “Os presidentes das companhias passam a ser mais exigentes também em relação ao retorno do investimento em Marketing e vendas”, acrescenta Caixeta.

Surge o conceito de reputação corporativa, cuja base é a credibilidade, a confiança. A habilidade de entender e trabalhar para o cliente passa a permear o trabalho de todos na empresa. A exigência do se incluir um pensamento mais estratégico para se alcançar o sucesso impactou principalmente o segmento de bens de consumo não duráveis e duráveis. 

Em vez de simplesmente comunicar os produtos disponíveis em seus portfólios, as companhias passaram a inovar baseadas no que já haviam observado como demandas dos clientes. O consumidor passa a dar o tom. “Vejo hoje muito mais responsabilidade nas promessas de marca nesses segmentos, como o automotivo”, completa Caixeta.

Plano Real, Nielsen, inflação, consumoNova comunicação com o cliente
A “revolução” acertou em cheio o modelo de negócios dos supermercados. Antes do Plano Real, as famílias iam às compras com menos periodicidade e saíam dos estabelecimentos com até cinco carrinhos repletos de sacolas. Essa era a forma de tentar diminuir os impactos da inflação galopante. 

Com a estabilização da moeda, estabelecimentos menores, mais próximos de casa, ganharam espaço e passaram a investir mais em comunicação com o cliente. A variedade oferecida pelos fabricantes de alimentos também se diversificou de forma considerável.

No Rio de Janeiro, o supermercado Zona Sul soube aproveitar bem a nova realidade. Fundada em 1959 com a abertura de uma loja em Ipanema, a rede varejista focada nas classes A e B conta hoje com 32 pontos de venda espalhados pela cidade. 

Antes de 1994, a marca chegou a oferecer como diferencial, em sua unidade do Leblon, a possibilidade de se pagar as compras no cartão de crédito durante a madrugada, sem acréscimo de juros. Isso na época levou à formação de filas enormes de carrinhos nos caixas a partir da meia-noite.

A estratégia visava atrair mais gente para a rede, marcada por lojas menores, já que a maioria dos consumidores optava por ir a hipermercados na hora de abastecer suas casas. A estabilização da moeda permitiu ao Zona Sul explorar melhor seu diferencial. 

“Nosso negócio é de vizinhança, o que se traduz em conveniência, sortimento e serviço. A partir da estabilização da moeda, pudemos consolidar esses pilares”, explica Pietrangelo Leta, Vice-Presidente Comercial da empresa, em entrevista ao Mundo do Marketing.

Nos anos 1990, a rede chegou a desenvolver uma ação de comunicação que desencorajava os clientes a fazerem compras extensas. As peças convidavam os consumidores a fazerem do Zona Sul a despensa de suas casas, algo impensável no período pré-Real e muito adequado para os dias de hoje, em que as pessoas querem evitar até usarem o carro para afazeres do dia a dia, diante dos congestionamentos. Atualmente, a média de visitas às unidades da rede é de 2,7 vezes por semana. “Nossa meta é chegar a três vezes”, diz o executivo.

Clientes conscientes com preço
Plano Real, Nielsen, inflação, consumoNo Zona Sul, os clientes ainda não manifestam considerável mudança nos hábitos de consumo motivada pelas dificuldades econômicas do momento, mas já demonstram estarem mais conscientes quanto aos gastos. 

“Não apostamos em sermos os mais baratos, até por conta de quem é o nosso público-alvo, mas sabemos que os produtos considerados commodities precisam estar no preço de mercado. Se nosso concorrente oferece o óleo de cozinha por um valor mais competitivo, por exemplo, o cliente hoje faz um esforço para ir até lá no fim de semana”, conta Pietrangelo Leta.

Pagar mais caro do que o necessário de fato passou a ser questionado em grande parte do Brasil, com a disseminação até de grupos que interagem em redes sociais apontando estabelecimentos que cobram valores abusivos por produtos ou serviços oferecidos por outras empresas a preços mais baixos. Criou-se a figura do Surreal no lugar do Real. Tantos questionamentos se devem a uma queda no poder de compra dos consumidores.

Inflação afeta o poder de compra
A inflação acumulada desde o dia 1º de julho de 1994, data do lançamento do Real, até 1º de fevereiro deste ano, medida pelo IPCA, foi de 347,51%. Isso significa que R$ 100,00 da época valem hoje não mais de R$ 22,35, segundo cálculos realizados pelo matemático financeiro José Dutra Vieira Sobrinho a pedido do UOL. 

Já em relação ao índice Big Mac, levantado pela revista britânica The Economist, o Brasil ocupa a quinta posição no ranking de preço do sanduíche, considerando 48 países. Enquanto lanche custa US$ 4,62 nos Estados Unidos, aqui é adquirido por US$ 5,25.

Quando a revista ajusta o índice considerando o PIB per capita dos países, o Brasil salta para a primeira colocação, com o sanduíche chegando a custar 72,7% a mais para o consumidor se comparado ao americano. 

Isso significa que o Real está sobrevalorizado em relação ao dólar, partindo do pressuposto de que o preço de bens idênticos deveria ser o mesmo independente de onde se esteja no globo, garantindo paridade ao poder de compra.

Empresas que vendem produtos supérfluos tendem a sentir mais os impactos dessas mudanças. Enquanto a Nielsen ressalta para um estado de alerta, parte do mercado já considera a situação característica de uma crise. “O reflexo no empresariado está inibindo investimentos há pelo menos dois anos. 

Tenho um cliente no segmento de brindes que diversificou sua linha de produtos para tentar alcançar compradores aos quais não tinha acesso antes e passou a buscar fabricantes chineses para reduzir custos. 

Também já há planos de demissões ou troca por da mão de obra por outra mais barata. Faltam incentivos do governo a determinados segmentos”, critica Julio Amorim, Diretor Presidente do Great Group Estratégias Empresariais, em entrevista ao Mundo do Marketing.